Etapa 6B – Relatório 3
Brasil – Salvador a Caraíva
Olá amigos, O percurso foi num litoral de areões com longas praias e coqueirais onde, durante horas, eu não via absolutamente ninguém. Em quase todo o percurso pude pedalar diretamente na areia que, na maré baixa, ficava dura e plana e se transformava numa imensa rodovia particular com os barulhos e perigos dos carros substituídos pelos sons das ondas.
Depois de Salvador segui descendo até Caraíva visitando o sul da Bahia, um dos trechos mais belos do Brasil.
Meu notebook e barraca foram despachados para eu pedalar mais leve e acabaram fazendo muita falta. Mas a idéia de mudar a rotina e me propor desafios diferentes sempre me instigou. A falta do notebook me obrigou a encontrar outras formas de organizar meus textos e fotos e a falta da barraca fez da hospedagem um item de aventura diária, principalmente com todos hotéis lotados durante a alta estação de verão.
Não recomendo pedalar no litoral para ninguém que tenha amor à bicicleta. No meu caso, meu amor ao mar falou muito mais alto. Destruí todo mecanismo da bike que me surpreendeu por não ter me deixado na mão. Em alguns momentos a areia fazia tanto barulho na corrente que parecia que tudo iria travar. O quadro de fibra de carbono e alumínio fez bonito e tive ferrugem apenas em alguns parafusos e na corrente.
No sul da Bahia existem praias para todos os gostos. Algumas com muito axé e confusão, outras com muito silêncio e tranqüilidade. Algumas lotadas e outras desertas. Segui viagem depois do natal e acabei passando o ano novo em Morro de São Paulo, uma praia paradisíaca que antes era um refúgio tranqüilo e hoje se transformou numa Ibiza baiana.
A região está virando o paraíso dos europeus. Encontrei um inglês que, pela primeira vez no Brasil, veio apenas para o ano novo e retornaria logo após a festa. Muitos outros se encantam e ficam eternamente. Vários compram terras e por vezes chegam a ter a maioria dos terrenos de algumas vilas. Respeitando nossa gente, que sejam todos bem vindos.
Segui vendo televisões em todas as esquinas, bares, restaurantes, calçadas, praças, casas, etc. A força das redes de televisão continuou me assustando. O Brasil está dominado por ela. São poucos os que não estão hipnotizados e conduzidos. Durante as últimas eleições me lembro de uma pesquisa dizendo que mais de oitenta por cento da população brasileira se baseia na televisão para a escolha de seus candidatos.
O sistema existe para vender ignorância. O ignorante é facilmente manipulado e historicamente essa deficiência é utilizada pelos próprios políticos para se manterem no poder. A educação é o alicerce e única luz de mudança mas infelizmente o Brasil ainda não saiu da linha da miséria educacional. Vi escolas que não possuem sequer um banheiro (!!) e outras sem telefone, material escolar, etc e os professores continuam recebendo salários de fome.
O governo parece vislumbrar o bem e caminhar para frente mas a burocracia do sistema faz esses passos seguirem a lesma lerda e deixa a luz do fim do túnel cada vez mais distante.

Segui me deleitando com os coqueirais num visual que, apesar de maravilhoso, não mudou muito desde Recife. Saí da ilha, segui pedalando, cruzei o rio de Contas e, de repente, surgiu uma cadeia de montanhas rochosas que encontra o mar e cria um trecho completamente diferente de todos os outros. A partir de Itacaré existe uma cadeia de pequenas e inacreditáveis enseadas entre montanhas, coqueiros e gramados cujas praias só são acessíveis através de caminhadas por trilhas dentro da mata Atlântica. Um paraíso, principalmente para os surfistas. Parei em Itacaré por três dias e fiz algumas trilhas de bike.
Nesse trecho, com a bicicleta carregada, a única opção foi abandonar a costa e seguir pelo sobe e desce do asfalto. A última montanha é um mirante para toda a costa ao sul. Ali parei por horas, pensando no longo percurso ao sul que ainda tinha até a casa e vendo na curva do horizonte o mundo que já tinha ficado para trás.
O único trecho de estrada de asfalto que encontrei pista para ciclistas foi na saída de Itacaré e na chegada de Ilhéus. Parabéns!! Ainda tem muito que fazer mas isso demonstra que alguém está pensando na gente.
Da histórica Ilhéus fui para Canavieiras. De lá atravessei de barco o imenso mangue até Belmonte e segui pedalando por uma praia de águas escuras e sem muita graça até chegar em Santa Cruz de Cabrália, local onde Pedro Álvares Cabral chegou no Brasil em 1500.
Em Santa Cruz de Cabrália tenho a recordação da minha chegada de veleiro quando, em 2000, refiz a viagem de Cabral. Lembro que em 22 de abril, no aniversário de 500 anos da chegada dos portugueses, vi a maior concentração de policiais de toda minha vida. Eles estavam ali bloqueando a entrada dos indígenas e espancando os que insistiam em entrar no centro das comemorações. Uma vergonha! Mas, pior que isso, foi ver que nosso governo hipócrita, para comemorar, estava inaugurando uma nova cruz católica e um shopping em forma de oca para os indígenas.
A maior indignação é ver que, até hoje, ao invés de vergonha, o governo mostra com orgulho toda essa história. Infelizmente, nas nossas escolas, seguimos estudando que “quem descobriu o Brasil” foi Pedro Álvares Cabral e pouco aprendemos sobre nossos povos nativos enquanto nosso governo brada para que todos os turistas venham conhecer a linda “costa do descobrimento”. Por amor à veracidade e respeito aos povos indígenas, não deveríamos heroificar a chegada dos portugueses e sim reescrever nossa história sob a ótica de uma nação com identidade e sem a visão colonizada que insistimos em utilizar.
Visitei o “shopping em forma de oca” e a “cruz católica”. Tive vontade de ficar ali com um megafone na mão, como um louco, gritando para todos os turistas a verdade daquele lugar. Mas de loucura já basta a bicicleta. Segui pedalando e deixo aqui a história que vi. Cabe a cada um, principalmente professor, pensar duas vezes antes de dizer que o Brasil foi um dia “descoberto” e parar de heroificar a bandidagem que existiu durante toda nossa colonização.
O sol continuou forte. Fiz as pedaladas apenas com um chapéu, um short e muita água de coco. A rota possui muitas bocas de rios e, várias vezes, dependi de balsas para atravessá-las. De Porto Seguro para o sul, comecei a ver imensas falésia com visuais incríveis. Parei em Arraial d´Ajuda, outra Ibiza baiana, e no outro dia fui para Trancoso.
O caso “quadrado”
O “quadrado” é o centro geográfico- religioso-social de Trancoso. É uma imensa área verde retangular no alto de uma falésia. Três lados do quadrado são formados por casas e um lado é o vazio da alucinante vista que o alto da falésia possui para o oceano. No centro do quadrado está a pequena igreja, uma das primeiras construções portuguesas no país. A história do “quadrado” antevê a colonização mas infelizmente pouco se sabe das comunidades que ali viveram. Basta pisar naquele grande gramado para perceber que o local é e sempre foi sagrado.
Há poucos anos atrás, viviam no “quadrado” os pescadores da vila. Hoje o lindo local se transformou em um shopping a céu aberto. As pequenas casas foram reformadas e adaptadas para receber grifes, restaurantes e bares. Os moradores nativos foram substituídos pelos investidores forasteiros e os primeiros moradores formaram uma nova vila com construções de cimento e amianto na saída da cidade.
A pressão imobiliária e social se repete em quase todo o litoral brasileiro e fico com a impressão de que todo local genuinamente belo, agradável por ser simples e por seus moradores possuírem uma hospitalidade legítima, em breve irá se transformar em grandes empreendimentos capitalistas. Bastarão os primeiros mercantilistas se aproximarem (e o mundo está cheio deles) que o local perderá sua beleza autêntica para o se transformar em mais um ambiente pasteurizado expulsando toda a simplicidade e beleza de povos que antes ali conseguiam viver felizes e sem ganância.
A comunidade de Trancoso está se mobilizando para evitar maiores destruições. Já foram feitos vários abaixo-assinados mas tudo indica que as grandes corporações irão falar mais alto e continuar suas inconseqüentes intervenções em todo litoral.
“… Nós, a comunidade de Trancoso e seus visitantes, viemos por meio deste abaixo assinado pedir a criação e implantação de um parque ecológico marítimo numa área litorânea em frente da vila, por motivo de prevenir a destruição desta mesma área através de mega empreendimentos imobiliários e turísticos, especificamente, o desenvolvimento e construção de um resort e marina. A área em questão está limitada pela foz do Rio Trancoso até aproximadamente 2 km para o sul (praia chamada do Vegetal), e desde os corais e recifes próximos da praia até a estrada beirando as falésias, mais ou menos 60 hectares em total.” Abaixo Assinado com mais de mil e trezentas assinaturas
“E ste projeto é de caráter urgente a fim de prevenir a descaracterização, degradação e privatização desta área através de empreendimentos turísticos que só favorecem a poucos e transforma em “jardins” o habitat natural existente, dificultando a comunidade de usufruir dessas praias dentro dessa área. Por ser empreendimentos de alto nível, fica inviável compartilhar esta área com pessoas simples e humildes como é nossa comunidade!!!” Projeto Parque Ecológico Marítimo de Trancoso
Não faltam exemplos para esse problema, em vários pontos vi áreas de mangues aterradas e invadidas por casas e pousadas. As áreas de proteção ambiental de costa marítima e de margens de rios, apesar de existirem leis federais defendendo-as, são totalmente desrespeitadas pelos inconseqüentes que ali constroem. Algumas pousadas chegam ao absurdo da ilegalidade ambiental e social de avançar a cerca de uma forma que, durante a enchente da maré, os transeuntes precisam caminhar dentro da água para transpô-las.
O litoral brasileiro necessita de um plano diretor (ambiental, social e econômico) urgente que norteie e controle o crescimento urbano e as interferências sociais. Infelizmente quase nenhuma das vilas pelas quais eu passei possui sequer uma lei de uso e ocupação do solo.

Ainda em Trancoso presenciei a tradicional Festa de São Brás, o simpático santo que pede para os foliões “festejarem com toda alegria”. Para ajudar que os pedidos do santo sejam realizados, a comunidade oferece música e cachaça durante toda festa. Alguns fiéis mais devotos passam os dois dias fazendo sua prazerosa oferenda de felicidade sem parar nem sequer para dormir. A festa é pop e grátis o que me proporcionou matar a saudade de dançar um forró (for all) junto com as pessoas mais simples da vila, igual era há alguns anos atrás, antes da transformação do “quadrado”.
De Trancoso segui para a paradisíaca Caraíva, uma vila entre a reserva indígena dos Pataxós, a praia e o rio. Meu maior esforço foi o de não parar eternamente nesses paraísos. De Caraíva foi realmente difícil partir, principalmente porque sabia que dali eu abandonaria a costa e começaria o trecho pelas montanhas. Não por acaso, foi o local mágico escolhido para a mudança da rota.
Nas vilas pelas quais eu passava encontrei muitas pessoas usando burros como meio de transporte. Nas estradas é fácil encontrar famílias inteiras viajando com seus burrinhos e suas mudanças. Nômades na eterna aventura de uma vida melhor, vivendo na ilusão de que encontrarão a felicidade logo que passarem pela linha imaginária do “ir para fora”.
Em Caraíva não se usa carro e o transporte oficial também são as charretes e burros. Para muitos ali o quilômetro é uma medida inexistente. Quando eu perguntava a distância dos locais me respondiam:
– Ihhh, esse negócio de quilômetro eu não sei não… é longe.
– Mas quanto de longe?
– Um tanto bom.
– Mas quanto tempo andando?
– Ahh, umas duas suadas de égua!
Mais importante do que aprender que a referida égua suava a cada três quilômetros, foi me desprender dessa nossa mania de quantificar as coisas. Os adultos sempre me perguntam os números da viagem – Quantos pneus precisei, quantos quilômetros rodei, quantos países visitei, etc. enquanto as crianças sempre perguntam como vivi ou por que fiz a viagem. Acho que comecei com mente de adulto e acabei pensando como as crianças.
Depois de Caraíva subi o vale do rio Jequitinhonha. Mas as montanhas de Minas ficarão para o próximo relatório.
Um abraço,
Argus
“Se for planejar a vida, planeje a utopia.”
Obrigado pelo apoio:
Morro de São Paulo – www.postaisdomorro.com
Ilhéus – www.ilheuspraia.com.br
Arraial d´Ajuda – www.pousadadoroballo.com.br
Itacaré – Pizza a metro
Itacaré – Pousada da paz
Trancoso – Pousada Hibisco
Trancoso – Café Esmeralda Albergue
Caraíva – ANAC Associação dos Nativos de Caraíva
Para saber mais:
Fundação Joaquim Nabuco
Jornais
O Dia – Rio de Janeiro daily
O Correio Brazilense – influential broadsheet
O Globo – Globo-owned Rio de Janeiro daily
Jornal do Brasil – Rio de Janeiro daily
Folha de Sao Paulo – daily
O Estado de Sao Paulo – daily
Televisões
TV Band – commercial network operated by Grupo Bandeirantes
Rede Globo – major commercial network operated by Globo
Sistema Brasileiro de Televisao (SBT) – major commercial network
TV Record – major commercial network
NBR – operated by state-run Radiobras
Rede TV – commercial network
TV Cultura – public TV network with educational, cultural programming
Radio
Radio Nacional – FM and mediumwave (AM) network operated by state-run Radiobras
Radio Globo – commercial network operated by Globo
Radio Eldorado – affiliated to O Estado de Sao Paulo newspaper, operates mediumwave (AM) news station and FM music station
Radio Bandeirantes – network operated by Grupo Bandeirantes
Radio Cultura – public radio network, cultural programming
Agencias de noticias
Agencia Brasil – state-owned
Agencia Estado – private, Sao Paulo-based
Agencia Globo – private
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